Quando
criança, morava numa cidade que não avistava o mar: era preciso viajar até ele.
Viajávamos em família para visita-lo e as visitas eram sempre em manhãs de céu
com sol. O mar nos recebia com seu vento cheirando a sal sua água profundamente
azul numa imensIdade cintilante e com os
minúsculos grãos de areia de sua praia, que fazia as vezes de anfitriã para
nossos pés descalços e contentes. Minha irmã, minha mãe e eu de mãos dadas
corríamos até a linha onde as ondas retornavam da terra para o mar sumindo
embaixo da areia e deixando desenhos de montanhinhas no chão. Ali, no traçado
da marca d’água feita no solo, quando o próximo passo já seria sem chance de
pés enxutos ou garantia de terra firme, minha mãe parava e ensinava, antes de entrar no mar, especialmente num
mar onde nunca esteve, se benza e diga:
Deus vos salve Mar Sagrado
que hoje venho visitar
Doença venho trazer
Saúde quero levar
Desde então, a linha/fronteira desenhada pela água na
areia da praia é também a soleira da porta do mar. Ali, onde antes de passar se
pede licença e proteção, é a marca que avisa que estamos entrando em território
sagrado e perigoso, onde sabidamente corremos risco de transformação e de não
retorno. Acontece que nem sempre são manhãs de céu com sol, e no escuro das
noites sem lua tropeçamos na soleira da porta. E acontece que abismos não têm
soleira nem porta, e saber disso não faz diferença...