segunda-feira, 7 de março de 2016

Quando criança, morava numa cidade que não avistava o mar: era preciso viajar até ele. Viajávamos em família para visita-lo e as visitas eram sempre em manhãs de céu com sol. O mar nos recebia com seu vento cheirando a sal sua água profundamente azul numa  imensIdade cintilante e com os minúsculos grãos de areia de sua praia, que fazia as vezes de anfitriã para nossos pés descalços e contentes. Minha irmã, minha mãe e eu de mãos dadas corríamos até a linha onde as ondas retornavam da terra para o mar sumindo embaixo da areia e deixando desenhos de montanhinhas no chão. Ali, no traçado da marca d’água feita no solo, quando o próximo passo já seria sem chance de pés enxutos ou garantia de terra firme, minha mãe parava e ensinava, antes de entrar no mar, especialmente num mar onde nunca esteve, se benza e diga:

Deus vos salve Mar Sagrado

que hoje venho visitar

Doença venho trazer

Saúde quero levar
     Desde então, a linha/fronteira desenhada pela água na areia da praia é também a soleira da porta do mar. Ali, onde antes de passar se pede licença e proteção, é a marca que avisa que estamos entrando em território sagrado e perigoso, onde sabidamente corremos risco de transformação e de não retorno. Acontece que nem sempre são manhãs de céu com sol, e no escuro das noites sem lua tropeçamos na soleira da porta. E acontece que abismos não têm soleira nem porta, e saber disso não faz diferença...

terça-feira, 1 de março de 2016

   A moringa era de barro, o prato era desmalte, o fogo era de lenha, o tacho era de cobre, a aliança era de ouro, o riso era de alegria e a gaitada era de música. A casa deles era assim, a casa da roça. A da cidade guardava uma tristeza e uma saudade nos rostos dos retratados que nos olhavam de suas molduras na parede da sala, e no cheiro de naftalina e madeira dentro dos baús onde o tempo amarelava o branco da roupa de cama bordada à mão. Foram essas as casas deles que conheci.  

  Uma vez disse a meu avô que eu não aguentava mais morar em apartamento, que ia construir uma casa para me mudar. A primeira e única pergunta dele, e você já tem o chão, minha fia? Achei bonita essa pergunta (ainda acho) e não sabia (ainda não sei) o alcance do que ali estava se dizendo. O chão da casa vem antes da casa. O desejo da casa + o chão da casa: aí nasce a casa. O desejo é a semente e o chão é a terra onde plantamos a casa, é onde ela brota para acolher a gente. 

  Lá  nos antes do tempo da minha vinda, na infância de minha mãe, a família se mudava de seu chão, de sua casa, a cada falência financeira. Iam as poucas coisas e os muitos filhos em cima do carro de boi para longe da roça. 

​  Hoje moro na casa que meu avô perguntou pelo chão. Nessa casa tem a mata, o quintal e árvores e passarinhos e frutas nos pés de frutas. Aqui não crio gado, crio gato. Um rebanho, se assim se pudesse dizer por eles serem seis. 


  Há alguns anos morreu minha avó, morreu meu avô. Estão embaixo do chão: raízes da casa.