um tantinho de nostalgia...
Quando
assisti “Os Esquecidos”, o filme, o que mais me tocou foi a atitude da
protagonista - uma mãe que vai em busca do filho desaparecido. Ela
prefere a dor de tê-lo na saudade e na memória, ao consolo de perdê-lo
no esquecimento. Vi tantas coisas minhas ali. Pensei na minha
maternidade. Desde o começo, quando escolhi parir na água, sem roupa e
sem analgesia alguma, eu queria sentir tudo o que sentem as fêmeas
ao dar à luz suas crias. Eu me queria toda viva, nem um pouco
anestesiada, para sentir meus filhos saindo de mim, para recebê-los
inteira em meus braços. E foi assim que pari dois.
No
meu primeiro parto senti dor. Muita. Pudera, fiz uma cena imaginária
completamente cor- de – rosa bebê, onde não incluí a dor nem o medo. E
eles fazem parte, como fazem de toda mudança mais profunda. Enquanto a
noite caminhava lentamente na direção da madrugada, ali, ultrapassei
umbrais nunca imaginados. O medo fez a dor ficar imensa, quase
insuportável. Eu não sabia que existia aquele tanto de dor, e sabia
ainda menos que a experimentaria. Mas ela só era tão imensa porque o
medo minava minhas forças e me fazia me perder de mim. Não fosse
meu homem, meu amor, do meu lado a me dizer que estava ali comigo e, com
sua voz calma e firme, me soltando da teia do medo, acho que teria
sucumbido. A noite morreu num céu vermelho que trazia o dia, e um grande
orgasmo inundou meu corpo. Senti um ‘plofff’ e algo que cruzava o
caminho entre minhas entranhas e o mundo daqui de fora, era meu filho
saindo pela minha vagina. Minha força foi voltando e eu, emocionada,
senti-me mulher, mãe, forte, fêmea, viva, casulo da humanidade,
abençoada pela vida que surge da morte, peregrina que chega, afinal, a
um lugar muito, muito distante. Parto não é cor- de- rosa – bebê. Parto é
vermelho-sangue-vivo. Sentir aquela coisinha quente, escorregadia e
macia a me olhar e procurar meu seio e abocanhá-lo era – e é – algo que
não cabe em palavras, é inominável. A anestesia tiraria dor e
orgasmo.
Depois
do parto, eu não conseguia dormir, só olhar e tocar e falar mansamente
com meu filho, tão pequenino e tão... tantas coisas e sentimentos e
sensações que não conseguem ficar entre os fios tecidos pelas palavras.
Dentro de mim eu sabia que por ele eu iria ao céu e ao inferno, que por
ele eu mataria e morreria se preciso fosse. Ali, aprendi sobre medos e
coragens, dor e tolerância, amor e ir além. Com essa aprendizagem me
preparei para o nascimento de minha filha que veio dois anos depois.
Conheci mais meu corpo e meu medo. Treinei-me para relaxar na contração.
Fiz par comigo. Não esperei salvação vinda de fora. Cabia a mim tourear
meu medo e colocá-lo no lugar adequado. Ele não era o protagonista.
As
contrações vieram ao amanhecer e eu caminhei pela casa, massageando a
barriga e cantando cantigas de ninar. Meu filho me pedia, ainda alguns
anos depois, ‘canta, mamãe, aquela música de receber a irmãzinha’.
Cantava eu para ela, para ele e para mim mesma. Vesti um vestido
vermelho, me perfumei com ‘Chanel no. 5’, coloquei umas argolas ciganas e
fomos para a clínica. Do medo, nem sombra. Ele só teve uma pequena
participação, um pouco antes de eu entrar na banheira. O médico percebeu
e me disse: ‘Tá com medo, broto? Tenha, não. Agora não tem volta’. Com a
calma advinda do inevitável, entrei na banheira e me pus de quatro.
Quadrúpede, fêmea. Meu homem
comigo, jogando água morna nas minhas costas. Novamente o ‘plofff’ e a
sensação de que céu e terra, fera/bicho e Deus se encontravam em meu
corpo. Ela no meu colo mamava e me olhava. Estávamos nos reconhecendo.
Olhos nos olhos pela primeira vez. Novamente a sensação de que tudo
faria, jornadas longínquas, matar ou morrer, trocar cabelos escuros por
cabelos brancos, ficar forte na fragilidade, tudo, qualquer coisa. Minha
coragem brotava do útero da Vida e da Morte, e isso não é possível
esquecer. Nunca.