quinta-feira, 1 de dezembro de 2016



 um tantinho de nostalgia...

  Quando assisti “Os Esquecidos”, o filme, o que mais me tocou foi a atitude da protagonista - uma mãe que vai em busca do filho desaparecido. Ela prefere a dor de tê-lo na saudade e na memória, ao consolo de perdê-lo no esquecimento. Vi tantas coisas minhas ali. Pensei na minha maternidade. Desde o começo, quando escolhi parir na água, sem roupa e sem analgesia alguma, eu queria sentir tudo o que sentem as fêmeas ao dar à luz suas crias. Eu me queria toda viva, nem um pouco anestesiada, para sentir meus filhos saindo de mim, para recebê-los inteira em meus braços. E foi assim que pari dois. 

  No meu primeiro parto senti dor. Muita. Pudera, fiz uma cena imaginária completamente cor- de – rosa bebê, onde não incluí a dor nem o medo. E eles fazem parte, como fazem de toda mudança mais profunda. Enquanto a noite caminhava lentamente na direção da madrugada, ali, ultrapassei umbrais nunca imaginados. O medo fez a dor ficar imensa, quase insuportável. Eu não sabia que existia aquele tanto de dor, e sabia ainda menos que a experimentaria. Mas ela só era tão imensa porque o medo minava minhas forças e me fazia me perder de mim. Não fosse meu homem, meu amor, do meu lado a me dizer que estava ali comigo e, com sua voz calma e firme, me soltando da teia do medo, acho que teria sucumbido. A noite morreu num céu vermelho que trazia o dia, e um grande orgasmo inundou meu corpo. Senti um ‘plofff’ e algo que cruzava o caminho entre minhas entranhas e o mundo daqui de fora, era meu filho saindo pela minha vagina. Minha força foi voltando e eu, emocionada, senti-me mulher, mãe, forte, fêmea, viva, casulo da humanidade, abençoada pela vida que surge da morte, peregrina que chega, afinal, a um lugar muito, muito distante. Parto não é cor- de- rosa – bebê. Parto é vermelho-sangue-vivo. Sentir aquela coisinha quente, escorregadia e macia a me olhar e procurar meu seio e abocanhá-lo era – e é – algo que não cabe em palavras, é inominável. A anestesia tiraria dor e orgasmo.    

  Depois do parto, eu não conseguia dormir, só olhar e tocar e falar mansamente com meu filho, tão pequenino e tão... tantas coisas e sentimentos e sensações que não conseguem ficar entre os fios tecidos pelas palavras. Dentro de mim eu sabia que por ele eu iria ao céu e ao inferno, que por ele eu mataria e morreria se preciso fosse. Ali, aprendi sobre medos e coragens, dor e tolerância, amor e ir além. Com essa aprendizagem me preparei para o nascimento de minha filha que veio dois anos depois. Conheci mais meu corpo e meu medo. Treinei-me para relaxar na contração. Fiz par comigo. Não esperei salvação vinda de fora. Cabia a mim tourear meu medo e colocá-lo no lugar adequado. Ele não era o protagonista. 

  As contrações vieram ao amanhecer e eu caminhei pela casa, massageando a barriga e cantando cantigas de ninar. Meu filho me pedia, ainda alguns anos depois, ‘canta, mamãe, aquela música de receber a irmãzinha’. Cantava eu para ela, para ele e para mim mesma. Vesti um vestido vermelho, me perfumei com ‘Chanel no. 5’, coloquei umas argolas ciganas e fomos para a clínica. Do medo, nem sombra. Ele só teve uma pequena participação, um pouco antes de eu entrar na banheira. O médico percebeu e me disse: ‘Tá com medo, broto? Tenha, não. Agora não tem volta’. Com a calma advinda do inevitável, entrei na banheira e me pus de quatro. Quadrúpede, fêmea.  Meu homem comigo, jogando água morna nas minhas costas. Novamente o ‘plofff’ e a sensação de que céu e terra, fera/bicho e Deus se encontravam em meu corpo. Ela no meu colo mamava e me olhava. Estávamos nos reconhecendo. Olhos nos olhos pela primeira vez. Novamente a sensação de que tudo faria, jornadas longínquas, matar ou morrer, trocar cabelos escuros por cabelos brancos, ficar forte na fragilidade, tudo, qualquer coisa. Minha coragem brotava do útero da Vida e da Morte, e isso não é possível esquecer. Nunca. 


segunda-feira, 7 de março de 2016

Quando criança, morava numa cidade que não avistava o mar: era preciso viajar até ele. Viajávamos em família para visita-lo e as visitas eram sempre em manhãs de céu com sol. O mar nos recebia com seu vento cheirando a sal sua água profundamente azul numa  imensIdade cintilante e com os minúsculos grãos de areia de sua praia, que fazia as vezes de anfitriã para nossos pés descalços e contentes. Minha irmã, minha mãe e eu de mãos dadas corríamos até a linha onde as ondas retornavam da terra para o mar sumindo embaixo da areia e deixando desenhos de montanhinhas no chão. Ali, no traçado da marca d’água feita no solo, quando o próximo passo já seria sem chance de pés enxutos ou garantia de terra firme, minha mãe parava e ensinava, antes de entrar no mar, especialmente num mar onde nunca esteve, se benza e diga:

Deus vos salve Mar Sagrado

que hoje venho visitar

Doença venho trazer

Saúde quero levar
     Desde então, a linha/fronteira desenhada pela água na areia da praia é também a soleira da porta do mar. Ali, onde antes de passar se pede licença e proteção, é a marca que avisa que estamos entrando em território sagrado e perigoso, onde sabidamente corremos risco de transformação e de não retorno. Acontece que nem sempre são manhãs de céu com sol, e no escuro das noites sem lua tropeçamos na soleira da porta. E acontece que abismos não têm soleira nem porta, e saber disso não faz diferença...

terça-feira, 1 de março de 2016

   A moringa era de barro, o prato era desmalte, o fogo era de lenha, o tacho era de cobre, a aliança era de ouro, o riso era de alegria e a gaitada era de música. A casa deles era assim, a casa da roça. A da cidade guardava uma tristeza e uma saudade nos rostos dos retratados que nos olhavam de suas molduras na parede da sala, e no cheiro de naftalina e madeira dentro dos baús onde o tempo amarelava o branco da roupa de cama bordada à mão. Foram essas as casas deles que conheci.  

  Uma vez disse a meu avô que eu não aguentava mais morar em apartamento, que ia construir uma casa para me mudar. A primeira e única pergunta dele, e você já tem o chão, minha fia? Achei bonita essa pergunta (ainda acho) e não sabia (ainda não sei) o alcance do que ali estava se dizendo. O chão da casa vem antes da casa. O desejo da casa + o chão da casa: aí nasce a casa. O desejo é a semente e o chão é a terra onde plantamos a casa, é onde ela brota para acolher a gente. 

  Lá  nos antes do tempo da minha vinda, na infância de minha mãe, a família se mudava de seu chão, de sua casa, a cada falência financeira. Iam as poucas coisas e os muitos filhos em cima do carro de boi para longe da roça. 

​  Hoje moro na casa que meu avô perguntou pelo chão. Nessa casa tem a mata, o quintal e árvores e passarinhos e frutas nos pés de frutas. Aqui não crio gado, crio gato. Um rebanho, se assim se pudesse dizer por eles serem seis. 


  Há alguns anos morreu minha avó, morreu meu avô. Estão embaixo do chão: raízes da casa.