quarta-feira, 15 de outubro de 2014

sobre mães e jacarés na psicanálise


"Toda mãe, seja ela boa ou má, é um jacaré com a boca aberta."

Essa frase quem disse foi o meu analista. E disse sem paixão, sem qualquer traço de sentimento algum. Apenas me dava uma informação. A minha resposta foi: e eu me sinto dentro da boca do jacaré, sendo triturada pelos seus dentes...
Terminamos a sessão. Fico imaginando como seria continuarmos nós três, ali, por muito mais tempo. Saímos nós dois, o jacaré e eu. 
O jacaré ocupava toda a minha cabeça.

...  

...Silêncio...
? ? ?   
!!!!!

E o jacaré lá. Com sua imensa boca aberta. No meio da minha cabeça. O centro das atenções dos pensamentos que vieram em multidão para vê-lo. E cada um falava uma coisa. Muitas coisas foram ditas. Das mais absurdas às mais sábias. O primeiro pensamento que chegou foi:
- Meniiina, ele chamou sua mãe de jacaré !...
E logo a conversa entre meus pensamentos e ‘eu mesma’ seguiu animada dentro da minha cabeça:
- É, e chamou a dele também!
- Viu aí? Você chorou tanto na sessão que ele detonou logo todas as mães...
- É isso mesmo: são todas uns ja-ca-rés!
- E você chorando e sofrendo tanto por causa de um jacaré?!
- O jacaré está de boca aberta, você só entra se quiser...
-...ou se não o vir a tempo de escapar.
- Viu? Ele abriu a boca do jacaré e deixou você sair.
 - É. Você não se sentia prisioneira e esmagada na sua relação com sua mãe ? Esse jacaré de boca aberta abre tantas possibilidades...
- É verdade, aaaai, que alííívio!
- Mas eu gostei mesmo foi que ele chamou toda mãe de jacaré! Adorei! Vou fazer uma musiquinha:
Minha mãe é um jacaré-é-é.
Nina, nina, niina.
Jacaré-é-é.
Lá lá lá láá lááá lá.
- Quer parar de criancice e ver que essa fala recolocou a relação com sua mãe?
- Foi, abriu possibilidades. Eu posso me relacionar com a pessoa que é minha mãe. Hoje sou uma mulher adulta, posso me cuidar. Posso escolher como me relacionar. Escolher estar mais perto ou distante de quem eu quiser, a distância confortável. A boca do jacaré está aberta e estou diante e não dentro dela !  
- Sim, mas e aquela sua fala: 'Não sou pura. Tenho ímpetos de mistura.' ?
- Pois é. Um jacaré, com o bocão aberto é, ao mesmo tempo, uma ameaça e um convite a entrar.
- Que mania de se aproximar de tudo! Tem coisa que é prá ver de longe, criatura!
- É verdade. Até já estou com a síndrome que ataca depois dos 40: a síndrome do braço curto.
- A essa altura até sua vista está lhe dizendo prá se distanciar e ver melhor.
- Sim, e por falar em ver melhor, não tem uma coisinha que você está esquecendo?
- O quê? Que prá ficar esse tempo todo de boca aberta o jacaré só pode ser empalhado? Hehehehe!
- Não, engraçadinha. Você não se deu conta de que você também é mãe? Ele te chamou de jacaré também!
- Xiii, é mesmo...
- E eu como mãe?... Acho que com a entrada de meus filhos na adolescência, estou começando a abrir a boca e soltá-los... Mas o bocão parece que vai ficar na espera....
- Gente!? E eu que achava que a mãe era um mamífero!
- O analista disse que elas são répteis...
- É, mas não dá prá negar o aspecto mamífero da mãe.
- Seriam as mães uma mistura de macaco com jacaré, uns macarés
- Que bicho danado esse jacaré! Ele fica com a boca aberta, mas sou eu que estou tentando digeri-lo: primeiro ele era minha mãe, em seguida, a mãe do meu analista, depois todas as mães e, como se não bastasse, agora sou eu!
Eu, hein?! Sai pra lá, jacaré.

(Esse texto foi escrito em 2003. )

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